Já no carro enquanto estacionava à beira rio, Marta lutava em desespero de causa, contra todos os CDs que insistiam em cair-lhe do porta luvas enquanto procurava o único que queria ouvir.
- Este carro ‘tá a precisar de levar uma volta! Praguejava enquanto Maria tentava apanhar os CDs que, em jorros, se tinham espalhado aos seus pés.
- Onde é que vamos? Inquiriu Maria com a naturalidade de uma certeza revelada de que a noite lhes reservava ainda a magia da surpresa do Estar e do Ser.
- Podíamos ir…ao cinema? A uma discoteca? A um Bar? Depende…o que é que te apetece?
- …Tu! Apeteces-me Tu Marta.
Aquela ínfima partícula linguística, aquela palavra…uma só palavra, atirou Marta para o abismo de uma realidade que temia quase tanto quanto desejava, da qual fugia com o mesmo desespero com que a sabia inevitável e lutava por ela. Muda, tonta, entorpecida, aterrada e excitada pela velocidade com que sentia o sangue bombear-lhe as veias e chegar, em milhares de minúsculos arrepios, a todos os milímetros de pele do seu corpo. Marta não conseguia articular palavras nem pensamentos na ordem caótica do corrupio, não podia pensar nem mover-se. Marta não conseguia sequer pestanejar.
Os segundos seguintes pareceram-lhe anos e a voz que cantava no rádio do carro, misturava-se com o batuque ensurdecedor que lhe batia no peito e que parecia combinar-se com um outro que jurava ouvir e que suponha ressoar no peito de Maria. Milhões de anõezinhos largavam o seu corpo após um dia de trabalho, chiliões de partículas de energia procuravam a porta de emergência daquele envolcro físico e cansavam-se na correria, atropelando-se na luta pela fuga, deixando Marta trémula de vida e com os músculos esfrangalhados pelo ribombar daquela palavra: TU!
“Porque é que me sinto assim? Pareço uma miúda !? Eu tenho que saber lidar com isto!!!! E agora? O que é que eu faço????”
O tempo alucinou o espaço. A névoa de uma realidade nova iluminou os olhos de Marta e a clareza de uma dúvida inesgotável, nublou os de Maria. Ali estavam as duas. Quietas, paradas, alheadas do mundo e de si mesmas. Fixas, somente fixas nos olhos uma da outra. A calma de Maria contrastava com o pânico de Marta, e foi à tranquilidade daqueles enormes olhos castanhos que Marta gritou por socorro, foi a eles e só a eles que Marta pediu ajuda.
O frio da alma clamou por um abraço e os dois corpos enroscaram-se na ternura dos sentidos como duas crianças, como duas irmãs, numa castidade pecadora que nos cega e nos nega nas desculpas da inocência.
Maria, mergulhada no pescoço de Marta, podia sentir-lhe o cheiro. Não do perfume, esse não importa! Mas o da pele…aquele que é marca indelével da mão de Deus criador que nos põe no mundo, aquele que arrastamos connosco desde a infância e que não passa, não nos larga e nos denuncia. Podia tocar-lhe os cabelos, aquela imensa ceara de trigo ondulante e em desalinho. Marta deixava-se guiar pela mão estonteante daquele hálito meio fresco, meio doce, embriagante que Maria respirava, pelo bater apressado e ritmado daquele peito que apertava contra o seu.
Passaram muitos dias naqueles minutos, fizeram milhares de quilómetros entre os dois bancos do carocha, mas encontram-se naquele abraço. Naquele terno e malicioso, surdo e inevitável abraço que as jurou à eternidade de um sentir e as conjurou na bênção de uma união adivinhada das bocas que se desejam como se temem, do primeiro beijo, do primeiro amor…da primeira vez .